compreendendo as conexões entre natureza, sociedade e economia

Princípios para a construção de socioecossistemas diversos, funcionais e justos

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas sintetizam uma agenda com 17 propostas ambiciosas e interconectadas, referentes aos desafios-chave que precisamos enfrentar ao longo do século XXI. O delineamento de estratégias factíveis para a realização dos ODS em qualquer escala — por exemplo, municípios, estados ou países — depende criticamente da compreensão sobre sua interconexão. Estratégias verdadeiramente integradas precisam ser baseadas em Ciência. Nesse ponto, o conceito de resiliência de socioecossistemas é uma ideia que pode articular robustamente diferentes áreas do conhecimento que estudam a dinâmica de sistemas complexos para gerar conhecimento transdisciplinar, aplicações e inovações que serão a base da realização dos ODS.

Antes de apresentarmos a conceituação de resiliência, definimos brevemente socioecossistema ,, considerando aspectos fundamentais de sua dinâmica e estrutura. O socioecossistema é formado pelo (i) conjunto de elementos bióticos e abióticos que definem o ecossistema que, no Antropoceno, é indissociável das (ii) estruturas e processos construídos por seres humanos (antropogênicos). Adotamos aqui uma abordagem para socioecossistemas que está enraizada na  Ciência da Complexidade. Aqui, a ideia de complexidade  se refere ao fato de que a chave para a compreensão e manejo de socioecossistemas está na estrutura e dinâmica das interações  entre seus múltiplos elementos. Portanto, o  pensamento de rede é uma abordagem naturalmente aplicada para elucidar a estrutura e dinâmica integradas de ecossistemas, organizações sociais e empreendimentos econômicos.

Daqui em diante discutimos socioecossistemas como redes adaptativas complexas. Redes são formadas por elementos denominados nós e por suas interações, denonimadas links. Por exemplo, cada uma das diferentes espécies de animais polinizadores presentes em uma floresta é representada como um nó da rede ecológica que está ligado às diferentes espécies de plantas por ela polinizadas. A estrutura dessa rede é uma boa caracterização do serviço ecossistêmico prestado pelos polinizadores, garantindo a reprodução das plantas, a persistência da estrutura da floresta e ainda contribuindo com a agricultura. De forma similar, as atividades de diferentes empresas que extraem madeira em uma região podem ser descrita como uma rede caracterizando seus impactos sobre a cobertura vegetal de múltiplos fragmentos floretais e também os fluxos de comercialização associados. As redes, portanto, podem descrever sistemas tratados como distintos, mas que na verdade têm elementos comuns — gerando a possibilidade de trabalharmos com redes multi-nível que integram os processos ecossistêmicos e antrópicos, ambos relevantes para a dinâmica do socioecossistema. 

Socioecossistema

,Socioecossistema é um conjunto de agentes humanos e não-humanos cujas interações influenciam padrões e processos geograficamente explícitos (veja  Aho et al. 2022). Os agentes humanos incluem instituições e outros grupos sociais que moldam processos socioculturais e econômicos que modificam a constituição da paisagem e a dinâmica do território, influenciando, por exemplo, o uso da terra, as cadeias produtivas e os valores e normas que regulam o uso de recursos comuns. Os agentes não-humanos incluem entidades biogeofísicas que moldam o funcionamento dos ecossistemas, tais como a biodiversidade, a geodiversidade e os elementos hidrológicos, os quais contigenciam as atividades humanas e são por elas estruturalmente modificadas .

A abordagem de redes permite descrições sintéticas e comparativas entre diferentes tipos de socioecossistemas, por exemplo, em termos de tamanho (número de elementos constituintes), conectância, estrutura de interações e dinâmicas associadas. Dentre as múltiplas propriedades de rede que podem ser usadas para descrever socioecossistemas, um atributo fundamental é a resiliência. Não é a intenção aqui revisar de forma abrangente esse conceito, que tem diferentes significados — por exemplo, veja o trabalho clássico de Holling (1996) sobre “resiliência da engenharia” vs. “resiliência da ecologia” para uma entrada sobre a ampla discussão conceitual sobre resiliência, estabilidade, robustez, resistência e suas inter-relações. Adotamos uma definição de resiliência socioecológica delimitada frente à realidade brasileira, mas que está fundamentada na conceituação estruturada desde Holling (1973) e, portanto, representa um arcabouço transdisciplinar sólido para integrar teorias de equilíbrios múltiplos que permitem conectar conceitual e metodologicamente diferentes campos da Ecologia e Economia.

Resiliência Socioecológica

A partir da fusão da conceituação de resiliência apresentada por Walker (2004), Biggs et al. (2012) e por Moberg et al. (2016), podemos defini-la como a propriedade de qualquer sistema – por exemplo, uma floresta, uma cidade ou uma cadeia produtiva – de manter sua capacidade de adaptação, absorvendo e transformando choques e perturbações — como mudanças climáticas ou crises econômicas — de forma a gerar renovação e inovação . A resiliência, portanto, está fundamentalmente ligada à adaptabilidade de sistemas complexos e sua capacidade de reconfigurar suas interações de forma a manter seus aspectos estrutrais e dinâmicos fundamentais, inclusive seus feedbacks internos. A resiliência de socioecossistemas, especificamente, se refere a essa capacidade em redes complexas formadas por agentes naturais, sociais e econômicos. Manejar socioecossistemas, portanto, depende de nossa compreensão sobre como as interações entre seus componentes permitem a adaptação de sua estrutura, funcionamento e feebacks internos frente a perturbações, sem alterar propriedades fundamentais que desejamos manter..

Sete princípios fundamentais para promover a resiliência socioecológica

Apresentamos aqui os sete princípios fundamentais para a governança de socioecossistemas como uma releitura da perspectiva apresentada por  Biggs et al. (2012) e por  Moberg et al. (2016) perante os objetivos do DATAPB e do LMI IDEAL., os quais condideram a realidade ecológico-econômica e sociocultural de territórios ambientalmente degradados e socialmente vulneráveis do Nordeste brasileiro ( Berti-Equille & Raimundo 2022).

1. Promover a diversidade e funcionalidade

A valorização da sociobiodiversidade e a compreensão dos processos responsáveis por sua integridade e funcionalidade é o primeiro princípio fundamental para promovermos a resiliência de socioecossistemas. A diversidade é a matéria-prima para a adaptabilidade e inovação. A diversidade de espécies, interações, habitats, usos da terra, grupos culturais, instituições, empresas e movimentos sociais são alguns exemplos dos múltiplos elementos humanos e não humanos que integram a diversidade do socioecossistema. Esses elementos são os responsáveis por sua capacidade de mudança perante perturbações e incertezas. Os elementos humanos e não-humanos do socioecossistema se retroalimentam e moldam adaptações e coadaptações envolvendo a diversidade biológica, das práticas socioculturais e das cadeias produtivas. Nos socioecossistemas, a diversidade está estreitamente ligada à funcionalidade, dando margem a inovações que articulam funções ecossistêmicas , processos produtivos e os aspectos socioculturais e políticos dos territórios. Assim, quando falamos de socioecossistemas regidos pela governança humana, as ideias de adaptação e inovação se equiparam.  No contexto do DATAPB e do LMI IDEAL, o princípio de promover a diversidade e a funcionalidade de socioecossistemas está explícito na linha de pesquisa “Proteção e valorização da agrobiodiversidade, recursos hídricos e conhecimento tradicional”

2. Manejar as conectividades biológicas e socioprodutivas

Em nossa abordagem, tratamos socioecossistemas como redes complexas formadas por agentes biológicos, sociais e econômicos. Os padrões de conectividade dessas redes são, portanto, outro aspecto fundamental a ser compreendido e manejado. Quando falamos de conectividade biológica, nos referimos, por exemplo, aos esforços de restauração florestal e de refaunação para religarmos funcionalmente fragmentos de habitats nativos que estão atualmente ilhados em paisagens degradadas dominadas por  plantations e pecuária e, por consquência, mais sujeitos à erosão da biodiversidade e ao colapso dos processos ecossistêmicos. A conectividade biológica também se refere às redes de interações ecológicas que descrevem uma variedade de serviços ecossistêmicos baseados em biodiversidade, tais como a polinização a dispersão de sementes e o controle demográfico de herbívoros, por exemplo. Por sua vez, as conectividades socioprodutivas, referem-se à estrutura dos processos produtivos e suas relações com as formas de organização do trabalho, cuja otimização é um passo crítico para possibilitar a inovação econômica associada à inclusão social. No contexto do DATAPB e do LMI IDEAL, delimitamos essa linha de pesquisa como “Otimização das conectividades socioecológicas e bioeconômicas para restauração de paisagens ambientalmente degradadas e socialmente vulneráveis”.

3. Monitorar e manejar feedbacks e variáveis lentas

Os sistemas socioecológicos podem estar configurados de múltiplas maneiras, tendo estados diferentes dependendo de como seus elementos estão interagindo. Algumas variáveis que se modificam lentamente descrevem propriedades fundamentais do socioecossistema que pretendemos compreender e transformar. A biodiversidade é um exemplo de variável lenta que pode ser transformada a partir do manejo da estrutura e dos feedbacks do socioecossistema. De fato, a biodiversidade é um atributo complexo que pode ser decomposto em diferentes variáveis monitoráveis, tais como a riqueza de espécies, a heterogeneidade biológica da paisagem ou mesmo a diversidade genética em populações de espécies indicadoras. Subsidiar mecanismos que geram feebacks positivos — reforçando a recuperação da biodiversidade e suas funcionalidades, por exemplo — é uma estratégia que promove a resiliência socioecológica. Ao induzirmos uma cadeia produtiva de produtos baseados em biodiversidade, tais como flores ornamentais, frutos e insumos industriais deles derivados, podemos contribuir para gerar um feedback positivo que reforce as iniciativas de reflorestamento e, por consequência, contribuam para a conectividade e diversidade biológica na escala paisagem. De fato, o manejo da diversidade e da conectividade inevitavelmente demanda o monitoramento de variáveis lentas que indicam se a direção da transformação de estado do socioecossistema está se aproximando dos objetivos socialmente definidos. O “manejo de feebacks e variáveis lentas” também é uma linha de pesquisa no contexto do DATAPB e LMI IDEAL.

4. Promover a experimentação e a aprendizagem social

A abordagem socioecológica supõe que políticas públicas e projetos de transformação territorial sejam embasados em Ciência. Assim, é necessário conhecermos a natureza do método científico e suas limitações. Uma visão essencial a ser compartilhada no processo de construção da resiliência socioecológica é que o conhecimento científico sobre um sistema é sempre limitado e por consequência, a pesquisa e monitoramento sempre serão necessários para subsidiar decisões e inovações. A produção de dados sobre diferentes aspectos do socioecossistema deve ser acompanhada de mecanismos consistentes de compartilhamento da informação gerada com todos os atores envolvidos no processo de governança socioecológica. No contexto do DATAPB e LMI IDEAL, esse princípio está delimitado em nossa abordagem de pesquisa participativa que supõe que as comunidades locais, professores e gestores que participam de nossos projetos são co-construtores do conhecimento.

5. Estruturar a governança com base na policentralidade

As políticas públicas costumam ser altamente hierarquizadas e compartimentalizadas em relação à sua gestão. Em contraste, a governança socioecológica requer pensamento e ação em rede associados a mecanismos de apoio à aprendizagem social, construção de consensos e tomada de decisão pelos múltiplos agentes dentro do socioecossistema. A ideia de policentralidade sintetiza essa visão de governança em rede. A policentralidade implica em ações coordenadas e cooperativas envolvendo instituições autônomas que dialogam para estabelecer regras consensuais sobre a gestão de recursos e outras estratégias pertinentes. A literatura socioecológica sugere que instituições aninhadas — que respondem a diferentes escalas e níveis de complexidade — garantem maior adaptabilidade quando os territórios enfrentam perturbações e desafios. No âmbito do DATAPB e do LMI IDEAL, a linha de investigação “abordagem multiescalar e policêntrica à gestão do território” foca-se nesse princípio.

6. Promover a participação social nas tomadas de decisão

A participação social é um aspecto central da governança que pode ajudar a consolidar as relações entre produção de conhecimento, democracia e cidadania. Essa participação gera um senso de pertencimento e responsabilidade em relação às decisões tomadas. O envolvimento das comunidades locais no processo de pesquisa (princípio 4) pode incluí-las mais efetivamente no processo de produção de conhecimento e, por consequência, na tomada de decisões baseadas em Ciência. A integração da pesquisa participativa com mecanismos de governança e tomada de decisões aumenta a confiança entre as instituições e a sociedade civil a partir da transperência e compromissos com interesses comuns. No contexto do DATAPB e LMI IDEAL, a participação social na pesquisa e governança também se desdobra no uso de ferramentas de inteligência artificial e ciência de dados para ciência participativa, o que em si abre linhas de pesquisa e inovação tão necessárias na atualiadade como desafiadoras.

7. Estudar e manejar sistemas socioecológicos como sistemas adaptativos complexos (SACs)

A abordagem de sistemas adaptativos complexos é outro princípio fundamental para a governança de socioecossistemas porque nenhum de seus elementos pode ser manejado isoladamente. O estudo de sistemas complexos foca-se nas interações e em suas dinâmicas. Esse foco exige dos atores envolvidos no processo de governança exercitar o pensamento sistêmico, avaliando riscos e incertezas e ponderando como as estruturas institucionais podem ser remodeladas para melhor se ajustar às dinâmicas socioecológicas. A perspectiva de SACs permite a aplicação de técnicas de co-manejo e governança adaptativa. Neste outro artigo exploramos com mais detalhes a ideia de adaptabilidade em sistemas biológicos, sociais e econômicos. Essa compreensão é fundamental para que a convergência da produção de conhecimento, sistemas normativos e o conjunto de valores e princípios em uma esquema de governança capaz de promover a transformação territorial. A abordagem de SACs para o estudo de sistemas socioecológicos é um princípio do DATAPB e LMI IDEAL.

Como citar este texto:

DATAPB, 2023. Resiliência e transdisciplinaridade: princípios para construção de socioecossistemas diversos, funcionais e justos. Disponível em http://datapb.ccae.ufpb.br.


+resiliência de socioecossistemas
a proposta do Corredor Ecoloógico
do Norte da Floresta Atlântica (CENFA)

Entender e manejar a diversidade e a conectividade são princípios fundamentais para promovermos a resiliência de socioecossistemas. O debate sobre corredores ecológicos conectando hotspots de biodiversidade e capilarizando os serviços ecossistêmicos em escala de paisagem ilustra os desafios práticos desses aspectos. Clique sobre o ícone vermelho para iniciar o vídeo em um janela destacada.

Rafael Raimundo (UFPB) e Cecilia Andreazzi (FIOCRUZ)

Como transformar paisagens ambientalmente degradadas e socialmente vulneráveis em bioeconomias sustentáveis?

Gravação de palestra apresentada no Encontro Nacional de Iniciação Científica do ICMBio em 2021.