Encontro reuniu doutores indígenas e ecólogos para debater princípios, estratégias e projetos para o diálogo, em pé de igualdade, entre ciências acadêmicas e indígenas


A possibilidade de continuar a luta ancestral utilizando as flechas da contemporaneidade. Foi assim que Bárbara Flores, do povo Borum-Kren do Vale dos Inconfidentes (Cordilheira do Espinhaço), descreveu o encontro entre doutores indígenas e ecólogos promovido pelo Instituto Serrapilheira nos dias 29 e 30 de Abril de 2024.  O encontro debateu princípios e estratégias para fomentar o diálogo entre epistemologias acadêmicas e indígenas. 

A partir desses debates, foram delineados projetos que abordam a confluência entre (i) ciências, práticas e lutas indígenas e (ii) a visão sistêmica e multi-escala da ecologia acadêmica sobre os processos que moldam a biodiversidade, o funcionamento dos ecossistemas e suas mudanças aceleradas impostas pela ação humana.

Cristina Caldas, diretora de Ciência do Serrapilheira e organizadora do evento, explicou a motivação para sua realização afirmando que “ apostamos na aproximação entre as ecologias indígenas e as ecologias da academia para trilhar novos caminhos da ciência e do conhecimento“.  Esse evento inicial reuniu pesquisadores indígenas dos povos Borum-Kren, Puri, Pankararu, Bará, Tukano e Potiguara que são apoiados pelo Instituto Serrapilheira.

Rafael Raimundo, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental da UFPB e um dos mediadores do evento, relata que
 “tivemos aqui um importante momento de reflexões sobre produção de conhecimento em um contexto de multiculturalidade. Emergiram propostas inspiradoras conectando a ecologia acadêmica com as ecologias indígenas.  Essa opinião é compartilhada por Carolina Levis, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da UFSC, outra ecóloga que atuou como mediadora das atividades: foi um encontro transformador e o ponto de partida de algo muito inovador e importante para o futuro de nosso país. Queremos impulsionar uma ecologia multicultural que tenha como base o respeito e a valorização das ciências indígenas, integrados à ciência ecológica de ponta , afirmou Levis.

Reconhecimento das ciências indígenas

O antropólogo João Paulo Lima Barreto, do povo Tukano e outro dos mediadores do encontro, enfatizou a importância de transcendermos abordagens que tratam as ciências indígenas como “etnoconhecimento”. A provocação trazida por João Paulo deu o tom do debate sobre o termo “ em pé de igualdade” que caracteriza a proposta de diálogo entre ciências nessa rede de ecologia multicultural. Para que essa igualdade exista efetivamente, é crucial removermos hierarquias entre os sistemas de conhecimento indígenas e não-indígenas. Historicamente, as ciências acadêmicas de origem europeia se expandiram sobre a América do Sul, institucionalizando-se como mecanismo hegemônico de produção de conhecimento. Essa hegemonia erodiu a diversidade epistêmica associada aos conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade e os ecossistemas, vulnerabilizando os modos de existência dos povos indígenas e tornando seus saberes e práticas alvos da biopirataria e do biocolonialismo.

João Paulo Barreto enfatiza a importância de falarmos da ciência indígena sem hierarquias implícitas: “é um sistema de conhecimento diferente e igualmente importante”

“Os povos indígenas já habitam esse território há 22 mil anos, manejando as florestas, os rios, a terra e o cosmo. Desenvolvemos tecnologias, como a arquitetura, a cerâmica e as tecnologias de processamento e armazenamento de alimentos. E também a medicina. Quando eu uso o termo medicina, eu estou usando com o sentido de arte de cuidado, saúde e cura. Todos os povos têm sua arte de cura, de cuidado e saúde. A ciência que chegou com o colonizador, há 524 anos, chegou com a prepotência de desqualificar outros modelos de conhecimento. Começou a traduzir nossos modelos de conhecimento na chave da religião. Não é à toa que ainda hoje ainda nossos conhecimentos são traduzidos como algo sagrado.

O Dr. João Paulo Barreto, em fala sobre o sentido do diálogo de epistemologias e o cuidado com os termos que se referem às ciências indígenas trazendo hierarquias implícitas.

Os termos sagrado, fé, espírito, espiritualidade, rezador, benzedor, Deus são chaves da religião, utilizadas para traduzir os conhecimentos indígenas. É muito importante a gente refletir sobre essa questão porque nós estamos discutindo a simetria de conhecimentos. Como podemos lidar com modelos diferentes de conhecimento? A ciência acadêmica ainda classifica os outros modelos de conhecimento a partir da sua lógica. É muito comum a a academia traduzir nossas ciências usando o termo etno. Tudo se tornou etno quando se fala de conhecimentos indígenas. Etnobotânica, etno-história, etnoconhecimento, etnomatemática. Tudo na chave do etno. Outra forma que usam para abordar nossos modelos de conhecimento é a chave da ancestralidade. Conhecimento ancestral, conhecimento milenar, e também conhecimento tradicional. Mas essas noções de ancestralidade, tradicional e milenar, no fundo, trazem uma ideia de que esse conhecimento é assistemático e, portanto, de que não é conhecimento, não é ciência. Que é algo mágico. Que é mito. Que é lenda. Então, quando a gente não reflete sobre essas traduções, a gente cai na armadilha de reproduzir esses termos e diferenciar o grau de validade dos modelos de conhecimento, mas não é assim.

Eu compreendo que nós simplesmente estamos diante de modelos de conhecimento diferentes  . Os povos indígenas são povos que constroem os conhecimentos ou propagam os conhecimentos pela oralidade. Oralidade para nós é fundamental. Oralidade para nós, a palavra em si, não é abstrato. A palavra para nós é concreto. Portanto, oralidade é importante. Em outros modelos de conhecimento, como na ciência acadêmica, o conhecimento vem principalmente pela escrita, livros e escolas. Ciências acadêmicas e ciências indígenas são modelos diferentes de conhecimento.  Nenhum dos modelos é pior ou melhor. E agora é necessário a gente refletir sobre isso para, de fato, trazer o diálogo.

Quando eu trago a crítica ao uso do termo etno, estou chamando a atenção para a armadilha de colocar a ciência indígena como quase ciência. Quase não é igual. A chave do etno captura os conhecimentos indígenas e coloca na lógica da ciência acadêmica e suas caixinhas. O nosso esforço deve ser colocar a pesquisa acadêmica e indígena em termos equivalentes, para promover sua compreensão pelas pessoas que não são familiarizadas com os conhecimentos indígenas. Então a gente vem discutir, trazer, debater isso tudo, para construir um caminho possível de diálogo. Como o modelo de conhecimento indígena é diferente, precisamos estar atentos, indígenas e não indígenas, para o seguinte: não estamos fazendo conhecimento indígena. Estamos apenas o traduzindo em termos equivalentes para dialogar, para mostrar que o modelo conhecimento indígena também é complexo e dinâmico, é sistemático, tem suas noções, categorias, conceitos e explicações. Então, o nosso esforço é esse, de construir um diálogo entre sistemas de conhecimento que são diferentes, mas equivalentes em importância.


A força criativa do
diálogo em pé de igualdade

Não-polarização e reconhecimento mútuo são a bases de uma visão multicultural para pesquisa e inovações sócioecológicas

Durante o encontro, o cuidado de não reproduzir hierarquias entre as ciências acadêmicas e indígenas gerou uma produtiva sinergia entre conceitos e compreensões ecológicas e seus equivalentes nas cosmovisões indígenas. Como resultado, emergiram novos projetos de pesquisa, alinhados com a visão multicultural de ciência e com o contexto ambiental e cosmopolítico dos territórios indígenas.

Esses projetos podem trazer inovações genuínas na busca pela sustentabilidade. André Junqueira, cientista interdisciplinar com experiência na interface entre biodiversidade e cultura e que também participou do encontro, afirmou que: “... para mim, esse encontro evidenciou de forma muito concreta a potência dos diálogos interculturais. Não somente como forma de avanço do conhecimento, mas como uma estratégia fundamental na construção de um futuro mais justo e na transformação das nossas relações com a natureza. ”  

Oralidade reflexiva, escuta e outras formas de construir ciência

O princípio de não-hierarquização entre ontologias e epistemologias indígenas e não-indígenas abre as portas para percepção de múltiplas formas de construção de compreensões ecológicas a partir das mesmas observações empíricas. Durante o encontro, o Dr. Silvio Sanches Barreto, do povo Bará e que também atuou como um dos mediadores das atividades, enfatizou a importância de serem compreendidos e respeitados os modos indígenas de construção de conhecimento. Silvio falou sobre o papel central da oralidade como forma pela qual o conhecimento passa entre gerações nas sociedades indígenas. Ela engloba histórias e uma variedade de ensinos orais que incluem compreensões dinâmicas — uma vez que são modificadas pela experiência — sobre o funcionamento dos ecossistemas e das relações entre humanos e outros seres. A oralidade, a escuta e a construção coletiva são a base de ciências indígenas que vinculam profundamente a memória ancestral, a identidade e o território. Não há dúvidas que a ecologia acadêmica tem muito a aprender nesse contexto.


Silvio Barreto: “momento histórico de confluência de conceitos e métodos na construção multicultural da casa da ciência e da tecnologia”

Quero destacar três impressões desse encontro me inspiraram com novas maneiras de pensar a ecologia. Primeiro, jamais tivemos esse tipo de diálogo de entendimento e de interação com interculturalidade. Jamais vimos. É um momento histórico de sentar, de ouvir e de promover uma rede de ecologia indígena. É histórico para nós indígenas. É histórico para o Brasil e para a ciência.

A segunda impressão é a importância de compreendermos melhor os métodos que cada um usa. Cada ciência, indígena e não indígena, tem seu método, sua linguagem, seus teóricos e seu campo de pesquisa. Aqui eu pude contribuir trazendo um método antigo do Rio Negro, usado de geração em geração. A pessoa senta num banquinho para ouvir, para escutar os conhecimentos. Esse método é o da escuta. É uma arte, uma técnica, uma tecnologia da escuta. Não é somente ouvir os sons, os barulhos, melodias, batidas, mas ouvir os conceitos construídos. 

Impressões do Dr. Silvio Sanches Barreto, filósofo e antropólogo do povo Bará, sobre o primeiro encontro de ecologia multicultural promovido pelo Instituto Serrapilheira.

Você começa a pensar esses conceitos construídos pelos antigos. Você ainda não tem total domínio desses conhecimentos, você apenas é informado, você recebe a narrativa, é como matéria bruta. É uma transmissão de conhecimento para sua vida. Uma vez que escutou uma narrativa, uma história, conheceu uma técnica da arte, da caça, da coleta, de construir uma casa, de derrubar uma roça, como tecer uma cestaria, como fabricar um banco, como fabricar o remo, como fazer a canoa. Conheceu uma técnica. Então você começa a adentrar no conteúdo, começa a incorporar, começa a perceber que aquelas narrativas, aquelas histórias, trazem o modo de fazer um certo objeto ou artefato.  No próximo passo, uma vez tendo esse acesso, tendo recebido as narrativas técnicas, a ciência ou a mitologia, você vai começar a pensar, vai destrinchar o que você escutou. Você vai dizer, ah, eu não sabia disso, que legal, bonito. Vai começar a sistematizar das histórias contadas, dos conhecimentos narrados, das vidas vividas, então você vai entender como é possível viver com essas teorias, com esse conhecimento.

A terceira impressão, muito importante, é a relação da ecologia acadêmica com a ecologia indígena. A ecologia, na etimologia da palavra, é sobre a casa. Também nós, indígenas, temos a mesma versão de que o mundo, o universo, é formado por camadas. E cada camada é uma casa. Cada lugar que se encontra na floresta é uma casa. Um lugar ter nome é importante. Não somente ser casa, mas também uma casa que tem nome. A montanha, o morro, a floresta, o rio, o lago – é casa,   é lugar que tem nome. As casas têm nomes e têm gestores. Então eu costumo dizer que cada lugar tem agenciador, cada lugar tem um gestor cosmopolítico.

Eu vi que a ecologia acadêmica e a ecologia indígena se complementam. Nós temos outro modo de fazer ecologia, outro modo de falar de ecologia. É formidável que isso seja o começo de um bom entendimento. A casa está sendo construída pelas duas ecologias, acadêmica e indígena, como casa de saberes, como casa de ciência e tecnologia.”

Conectando conceitos e métodos acadêmicos e indígenas

FUNDAMENTOS DE ECOLOGIA

As atividades incluíram uma visão geral da teoria ecológica e diversas abordagens experimentais para o estudo da biodiversidade. As exposições e debates foram mediados pelos ecólogos Carolina Levis (UFSC) e Rafael L. G. Raimundo (UFPB). Dessa forma, o diálogo multicultural também se beneficia de uma visão ampla sobre o conhecimento acadêmico relativo aos processos que estruturam a biodiversidade e o funcionamento dos ecossistemas. Rafael Raimundo relatou que “navegando pela ecologia acadêmica, esses doutores indígenas mostraram compreender relações entre processos em diferentes escalas espaçotemporais e níveis de organização biológica. Isso nos permitiu debater confluências da ecologia com as ecologias indígenas, seus territórios e lutas, vislumbrando assim a potência dessa rede multicultural.”  

REDES sOcioecológicAs

De forma complementar, perspectivas contemporâneas para a conservação e manejo da biodiversidade, restauração de ecossistemas e governança adaptativa foram debatidas em suas interfaces com o contexto indígena. As sinergias entre os sistemas de conhecimento indígenas e a visão de sócio-ecossistemas como sistemas adaptativos complexos inspiraram novos projetos e formas de diálogo. Carolina Levis explicou a origem dessas sinergias: “…  por se referirem à dinâmica de sistemas complexos, a compreensão multidimensional e holística é crucial na proposição de soluções para os problemas socioambientais. E essa forma de pensar está muito presente nos sistemas de conhecimento indígena.” 

Participantes

Além dos mediadores, participaram do encontro os seguintes pesquisadores indígenas apoiados pelo Instituto Serrapilheira:

Dra. Aline Rochedo Pachamama
Povo Puri da
Serra da Mantiqueira

“O encontro possibilitou aos acadêmicos nos enxergarem quanto às nossas formações, liberando as amarras do letramento racial. Somos ciência e somos história, mas não nos modelos acadêmicos. Sendo eu historiadora e artista, essa perspectiva de diálogo me traz inspiração para semear memória e expressão cultural para o florescimento das ciências naturais indígenas.”  
Dra. Bárbara Nascimento
Flores
Povo Borum-Kren da
Cordilheira do Espinhaço
“Foi um marco na ciência indígena pela interação com conceitos e métodos da ecologia acadêmica. Me ajudou a compreender como contribuir com a formulação de politicas públicas que promovam a restauração biocultural em diálogo com os territórios indígenas e suas cosmopolíticas.”
Dra. Elizângela Cardoso
de Araújo Silva
Povo Pankararu
do Sertão Pernambucano

“O encontro me permitiu construir uma ponte entre fundamentos da ecologia e o foco da minha pesquisa: os processos de deslocamento das famílias indígenas frente aos ciclos de abundância e escassez de alimentos e suas rupturas por mudanças nas condições ambientais. Foi um divisor de águas que indicou caminhos futuros.”
Dr. João Rivelino Rezende Barreto
Povo Tukano do Alto Rio Negro
“É muito raro a gente vivenciar experiências como essas. Acadêmicos indígenas vivem muito preconceito. Somos visto como estranhos, não como profissionais. Então fiquei muito feliz de ser tratado como cientista. Me senti respeitado. Nunca ninguém tinha me chamado de cientista. Isso nos fortalece e dá segurança, assim como a formação teórica em ecologia como base para um diálogo com a ciência indígena foi fundamental .”
Dr. Victor Felix
Povo Potigura da Paraíba
“Como indígena, foi muito significativo me reunir com um grupo de doutores indígenas. Enquanto pesquisador, foi um avanço debater com diferentes pessoas e instituições como modos de pensar e realidades indígenas podem se alinhar com a ecologia acadêmica .”
Williams Leandro da Silva
Povo Potiguara da Paraíba
“Esse encontro trouxe bons frutos para minha forma de enxergar o mundo. Me enriqueceu bastante como acadêmico e como pessoa. Eu vi que é possível juntar conhecimentos acadêmicos e indígenas. Foi uma experiência incrível, um verdadeiro divisor de águas  .”

Projetos paraibanos em integração com a rede de ecologia multicultural

Três projetos sediados na Paraíba estão em integração com a rede de ecologia multicultural apoiada pelo Instituto Serrapilheira:

– o projeto de redes sócio-ecológicas adaptativas, de Rafael Raimundo (Campus IV da UFPB), em sinergia com o DATAPB e o Laboratório Misto Internacional sobre Sustentabilidade IDEAL;

– o projeto de ciência do solo Potiguara, do Dr. Victor Felix (FIOCRUZ-RJ);

– o projeto Plantando uma Escola Viva Potiguara , co-proposto por Rafael Raimundo e Victor Felix em associação com o Selvagem – Ciclo de Estudos sobre a Vida, liderado por Ailton Krenak.

Para Rafael Raimundo, a integração da Paraíba com a rede de ecologia multicultural tem tudo para crescer porque coloca em sintonia projetos de vanguarda existentes no estado com projetos equivalentes de outras partes do Brasil:

“Estamos compartilhando ideias e experiências para a conservação e restauração biocultural de territórios que compartilham desafios comuns, com base na valorização da diversidade e do diálogo de saberes em pé de igualdade. Essas ligações criativas entre territórios e pesquisadores indígenas e não-indígenas que se reconhecem mutuamente como iguais geram uma ciência multicultural em sintonia com o Brasil profundo. E essa sintonia tem um potencial incrível para moldar uma rede com propriedades emergentes verdadeiramente revolucionárias”, opinou Raimundo.


Fotos: Pedro Lira – Instituto Serrapilheira.